jeff barbato

jeff barbato | artista visual

A fissura labial, fenda no palato ou fissura labiopalatina, é uma malformação congênita que acomete no Brasil um a cada 650 recém nascidos. Uma revisão de literatura segundo sugere que indivíduos nascidos com fissura labiopalatina relatam dificuldades em áreas específicas de funcionamento tais como integração social, cognição, comportamento e ajustamento psicológico. Deste modo, grande parte dos pacientes fissurados estão sujeitos a depressão, ansiedade e abstinência social por conta de sua aparência física. Foi inserido em nossa sociedade um modelo que reforça a visão da tragédia pessoal, o modelo de deficiência (ou deformidade) como um acontecimento terrível que acomete o indivíduo desafortunado. A partir dessa constatação, me interessa humanizar o diferente, entender esses corpos não como subtrações, mas como corpos complexos e divergentes como qualquer outro. Romper tradições e padrões, naturalizar o diferente entendendo toda sua complexidade, especificidades e necessidades específicas.

Narrativas fissuradas é um projeto iniciado em dezembro de 2019 e que se desenvolveu durante o período de um mês em residência artistica no município de Bauru. Sob a intenção de ouvir outras histórias de pessoas nascidas com fissura lábiopalatina, com o objetivo de cruzar vivências e memórias afetivas, intuindo discussões sobre capacitismo e padrões estéticos. A partir dessa ideia embrionária inscrevi o projeto em um edital Em Residência: Bauru contemplado pelo edital 10/2019 de Exposições inéditas em Artes Visuais do Programa de Ação a Cultura do Governo do Estado de São Paulo, adaptando-o de acordo com as premissas do edital que visavam uma pesquisa de campo relacionada especificamente ao município de Bauru. Desde os anos 60, a Faculdade de Odontologia de Bauru, da Universidade de São Paulo (FOB-USP), realiza dentro do município a pesquisa e o trabalho epidemiológico científico que é referência internacional até os dias de hoje, ao se falar da incidência de fissuras labiopalatinas na população brasileira. Essas infindáveis pesquisas científicas trouxeram e ainda trazem para Bauru pessoas de todo território nacional em busca de tratamento para sua fissura e demais anomalias craniofaciais dentro do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC/Centrinho). Dom Eliseu (PA), Formosa (GO), Porto Alegre (RS), Ipanema (AL), Belo Horizonte (MG), Vila Velha (ES), ABC, São Paulo e Bauru (SP), pessoas com um mesmo propósito, um mesmo destino: Centrinho em Bauru. Xs entrevistadxs interessadxs em participar do projeto, preencheram o formulário de manifestação voluntária divulgado nas mídias sociais, a partir disso, as entrevistas foram realizadas por ligações telefônicas.

Foram três semanas de pesquisa, imersão, vivência, encantamento e prática no CEU das Artes de Bauru local emprestado pela Secretaria de Cultura de Bauru para ser o ateliê durante a residência, localizado na região do Geisel pude perceber o público local para além da pesquisa que me propus a realizar. Conheci Luana, menina que queria aprender a desenhar estrelas; Leandro ou alemão um jovem rapaz aspirante a jogador de futebol que me ensinou a ler ‘pixos’; Isabel cantora e a Isabel poetisa. A partir dessa vivência pude explorar novos caminhos, conhecer uma Bauru diferente da que eu já conhecia e produzir obras além do que eu havia projetado. Apesar de ter vivido meus seis últimos anos em Bauru como estudante, minha relação com a cidade começa desde meus primeiros três meses de vida. Em 1990 viemos eu e meus pais em busca por tratamento para minha fissura labiopalatina. Vinte e nove anos depois, durante essa residência, entrevistei dez pessoas (90% mulheres/mães) sendo elas pacientes ou acompanhantes de pacientes do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC/Centrinho).

Cidade Transitória consiste em uma instalação sonora delineada por uma mesa. São reproduzidos em minha própria voz trechos das entrevistas bem como palavras repetidas com frequência pelxs entrevistadxs. Sobre a mesa há peças de porcelana quebradas e remendadas em um estado de fragilidade de ser e existir, encontradas no trajeto até o ateliê da residência. Também utilizo o cimento, a areia e a serragem, para desenhar o mapa dos percursos (vide mapa 01) feitos pelxs entrevistadxs dentro da cidade de Bauru de acordo com seus relatos, certamente sugerindo Bauru como uma cidade de passagens.

áudio da instalação na integra, é aconselhável ouvir com fones de ouvido

cidade transitória, 2020-21 | instalação sonora | idealizada durante o período de residência artística no município de Bauru. | folhagem, terra, serragem, porcelana, laca, folhas de ouro, falantes, amplificador e mesa.

Tantos Chãos Inconformados trata-se de uma série iniciada na residência, no entanto, idealizada alguns meses antes. Para desenvolvimento da obra instalativa revisito locais em Bauru, fruto das memórias pessoais minhas e das pessoas entrevistadas. No processo de pesquisa pedi para que descrevessem um local da cidade de Bauru sem me dizer que local era esse. Ao todo identifiquei sete lugares, cujo o percurso fora desenhado sobre a mesa da instalação cidade transitória.

Tantos Chãos inconformados, 2020-2021 | instalação com 28 frotagens de fissuras no chão da cidade de Bauru |  Atadura gessada | medidas variadas.

Dentre os lugares, estão: Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB-USP) e o HRAC/Centrinho; o parque Vitória Régia que fora citado por todas entrevistadas visto sua proximidade com o prédio do Centrinho; o Centro da Cidade; o Bosque da Comunidade; a região do Bauru Shopping e também o Templo Tenrikyo, que apesar de distante do HRAC, também fora citado por algumxs entrevistadxs. Estive em todos os locais procurando por rachaduras no chão, a fim de fazer frotagens com atadura gessada materializando essas rachaduras no corpo do trabalho e assim transportar para dentro da galeria memórias de cada lugar.

MAPA 01 –  percursos e zonas de memórias

O último trabalho foi atravessado pela pandemia de corona vírus do mesmo modo que a residência, impossibilitada de ser finalizada como previsto para o fim de março de 2020. Útero nasce durante a residência e transforma-se quando já isolado em casa por conta da pandemia. O trabalho consiste em três caixas de madeira confeccionadas por meu pai e sobrepostas por retalhos de tecido voil de minha mãe. Em duas caixas bordei sobre o voil com linha preta, semelhante à utilizada para suturar ferimentos, o trajeto feito (vide mapa 01) das respectivas cidades/estados das entrevistadas até Bauru, utilizei como referência um mapa do Brasil em escala de 1cm:50km visto que foram entrevistadas pessoas de diversos estados brasileiros, do norte ao sul do Brasil. Na terceira caixa o bordado sobre o voil simula o trajeto realizado pelas entrevistadas entre os locais de memória dentro da cidade de Bauru, tendo o Centrinho como ponto comum. No interior das três caixas, como em um útero, guarda-se um tesouro, ilustrações feitas com aquarela de três pacientes dos dez entrevistados, todos baseados em fotografias do momento antes dos pacientes fazerem a primeira cirurgia de reparação de sua fissura labiopalatina.

FIGURA –  aquarelas

Por fim, minha proposta no projeto foi passar semanas imersivas recolhendo material historiográfico sobre pessoas que se deslocaram até Bauru em busca de tratamento  para sua fissura, visto que o Centrinho, é referência na América Latina no tratamento da fissura labiopalatina. A partir disso, arrisco dizer que o guarda-chuva que cobre todo esse percurso caminha por lugares da humanização, do afeto, da valorização da vida e do amor materno. E digo por fim com satisfação de que se essas narrativas não fossem fissuradas essas histórias não estariam sendo contadas.

útero, 2020 | caixa de madeira, tecido voil, linha, papel e aquarela | 79x73x9 cm.

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